Tem um texto da teórica e revolucionária russa Alexandra Kollontai que eu gosto muito. A primeira vez que li, confesso, não foi por interesse específico em suas ideias, mas por essa beleza de título: "Abram caminho para o Eros alado".
Eros sem asas eu até então não tinha pensado, mas ela diz que tem. E que não é grandes coisas, mas pode ter certa função, enfim.
Abram caminho parece que é porque ele está chegando, o Eros alado, o Eros com suas asas. Fiquei imaginando.
Para Alexandra, o novo Eros será proletário. Digo será porque as coisas não saíram como ela descreveu, nos termos que pode pensá-los. Mas mesmo na parte que envelheceu mal (ele foi escrito por volta de maio de 1923) há passagens brilhantes. O texto é muito rico, atirado, e em geral muito pertinente para o debate atual.
Alexandra, aliás, era muito hábil escrevendo, sabia se fazer levar até um certo ponto de certeza ou de suspensão, para de surpresa trazer umas invertidas ótimas. São as invertidas que botam em questão tudo o que foi feito anteriormente, tornam necessário repensar. Elas produzem uma desorganização fundamental. Até o leitor retomar o rumo dessa prosa, é exigido dele que improvise, mesmo que por alguns segundos. Até criar um novo conjunto de sentidos.
Então se vocês me perguntarem se eu concordo ou discordo dela eu responderei: sim. As duas coisas, mas vou destacar alguns pontos importantes sobre a questão que, vocês já devem ter entendido, é sobre amor.
"Chegamos ao momento de reconhecer amplamente que o amor não é só um poderoso fator da natureza, que não é somente uma força biológica, mas também social. O amor é, por essência, um sentimento de caráter profundamente social. O certo é que o amor, em suas diferentes formas e aspectos, constituiu em todos os graus do desenvolvimento humano uma parte indispensável e inseparável da cultura intelectual de cada época. Mesmo a burguesia, que às vezes argumenta que o amor é "um assunto de ordem privada", pensa na realidade em como acorrentar o amor aos seus padrões morais para que sirva a afirmação de seus interesses de classe*" *(tradução minha).
Então, se o amor é social, ele se relaciona com seu tempo histórico, condições materiais, um monte de coisas assim. O que já limita de cara as conexões possíveis para cada pessoa, seja por meio de proibições diretas ou por jogos sociais um pouco mais sutis, se é que se pode dizer isso. Enfim, limitações que funcionam sem proibir, tipo quando você baixa um app de namoro mas limita a área de busca ao seu bairro, ou quando 99% dos seus amigos moram todos em um pequeno raio de distância da sua casa. Ninguém aberta ou legalmente te proíbe de ter relações fora desses limites, mas alguma coisa vai fazendo essas seleções por você, e depois com você: podemos dizer que você também é feito por essas seleções. Isso levando em conta uma série de coisas em relação, não raro relações de poder e de interesses.
Alexandra está ali preocupada com o destino do amor pós-Revolução Russa. Quer saber o que os proletários podem criar nesse sentido, tentar uma certo descarte dos ideais burgueses, fazer algo novo. Com as grandes dificuldades que isso inclui. Aí ela faz uma breve busca histórica, que por mais que contenha uma série de inconsistências e possa ser questionada, também levanta questões interessantes, por exemplo, sobre a dança do amor por entre as eras, dos Antigos e medievais aos burgueses capitalistas, uma odisseia do amor amizade, do amor espiritual como escudo para as piores atrocidades dos nobres membros da cavalaria e suas musas impossíveis, do grande problema de localização da atividade sexual no sentido de transa e o B.O. do casamento.
Uma citação longa, pra vocês entenderem melhor do que eu tô falando ali em cima: "Os ideólogos burgueses, os homens da Reforma [Protestante] reconheceram a legitimidade das sãs exigências da carne. O mundo feudal dividia o amor e lhe obrigava tomar duas formas completamente independentes uma daoutra: o simples ato sexual de um lado (relações sexuais do matrimônio ou do concubinato) e um sentimento de "elevado" amor platônico por outro ser (o amor que sentia o cavaleiro pela senhora de seus pensamentos). O ideal moral da classe burguesa compreendia, na noção do amor, a atração carnal saudável entre os sexos e a afinidade psíquica. O ideal feudal estabelecia uma diferenciação clara entre o amor e o matrimônio. A burguesia fundia estes dois conceitos. Para a burguesia, o conceito do amor era equivalente ao do matrimônio. Naturalmente, na prática, a burguesia violava seu próprio ideal. (...) a moral burguesa exigia, ainda que o matrimônio fosse por questões de conveniência, que os esposos aparentassem amar um ao outro, mesmo que somente em público(...) apesar da moral da burguesia proclamar o direito de "dois coraçõe amantes" unirem-se mesmo contra as tradições familiares, apesar de se burlar do "amor platônico" e do ascetismo e de afirmar que o amor era a base do matrimônio, era muito cuidadosa em por estreitas rédeas a todas as suas concessões. O amor não poderia ser considerado como um sentimento mais legítimo que o matrimônio: fora dele, o amor era considerado imoral. Este ideal respondido à consideração é de natureza econômica: evitar que o capital acumulado se espalhe (...) contribuir com a acumulação do capital. O ideal de amor ficava, portanto, constituído no casal unido em matrimônio, cujo fim era aumentar seu bem estar material e as riquezas no núcleo familiar completamente isolado do resto da sociedade. Quando os interesses da família e da sociedade se confrontavam, a moral burguesa sempre se inclinava a favor dos interesses da família". Volte e leia de novo.
O que ela diz aqui é mais ou menos o seguinte: a ideologia burguesa entende a carne e o amor como sinônimo de casamento, em uma relação excludente (na forma "se não tiver casamento, não há amor válido"), como formas de controle social da acumulação de capital nas células familiares, em detrimento do social. Então, pode ser romântico à vontade, só que não, não pode. É preciso seguir regras, e, se você realmente ama e honra seus pais e familiares, você vai segui-las. Certamente não é coisa que você nunca tenham visto por aí, talvez em sua própria história.
Mas o amor não deixa, ele resiste, não cumpre os checklists, ele escapa e acontece criando toda sorte das maiores inconveniências. Se a ideologia burguesa vai encontrando formas de minimizar esses problemas, sempre de olho na proteção de seus objetivos, Alexandra se pergunta o que ela e seus companheiros de classe, trabalhadores e revolucionários, podem fazer diferente, algo que envolva seus desejos mas sem desconsiderar a comunidade.
Kollontai toma um caminho diferente de certos debates atuais em alguns pontos aqui. Ela coloca, por exemplo, de o fato de mulheres ou homens se relacionarem ao mesmo tempo com vários parceiros, não criam dramas morais, com a condição de que não haja amor. Já o amor que ocorresse por uma e outra pessoa ao mesmo tempo, esse mereceria atenção especial, ou seja, não por transar com várias pessoas, mas por viver esse sentimento multiplicado. E quando digo que ela toma um rumo diferente, quero dizer melhor e mais rico.
Sim, Alexandra questiona o enclausuramento do amor necessariamente e somente a dois porque reconhece nesse formato a ideologia burguesa. Mas em nenhum momento ela apresenta argumentos para negar que isso possa acontecer mesmo entre os revolucionários, por escolha. O que ela critica é o monopólio como necessário, a concentração e, como já havia denunciado a padronização e o uso do amor como ferramenta de controle social, inclusive na patrulha feita pelo par escolhido, essas coisas de casamento blindado etc. Ela não sai por aí dizendo você não pode viver seu amor alado a dois, se quiser. O importante é que, quando ou se o quadro mudar, você não esteja preso a essas amarras e possa fazer mudanças. Isso é uma fineza que falta à boa parte do debate feito atualmente.
Alexandra propõe um ideal de amor camarada que, em sua análise, corresponderia bem às necessidades coletivas do proletariado. E sua defesa é muito bonita. Ela diz que quando só permitimos que sentimentos amorosos existam em um determinado contexto muito restrito, nós barramos a circulação desses sentimentos, que deveriam circular na comunidade. Não para você comer todo mundo nem para se relacionar em múltiplos namoros necessariamente (mas se quiser e a galera topar, pode), mas para o desenvolvimento de solidariedade, de laços sociais afetuosos.
E aqui eu acrescentaria, embora não exatamente como ela fala disso, o grande desprezo pelas amizades em parte do debate atual. Amizades, relações de trabalho organizadas, relações de vizinhança, de uso do equipamento público, isso tudo fica em segundo plano enquanto uma nova e chatíssima não-monogamia neoliberal ganha terreno.
E, aqui contrariando Alexandra, eu diria também que pouco se valoriza o amor inventado. Aliás há uma perseguição a esse tipo de coisa que é muito autoritária. Que se considere, sim, que há coisas que somos levados a desejar como ratinhos guiados em um túnel com doces. Mas, hey, não somos só isso. Da mesma forma que criamos inconveniências ao utilitarismo amoroso nas relações que acontecem nas ruas e quartos, também o fazemos nas nossas criações inventadas. Claro, existem coisas mais complicadas, consideradas patológicas, como a erotomania, entre outras situações que colocam pessoas em sofrimento e mesmo em perigo. Mas isso está longe de representar a totalidade dessas atividades, ou trocando em miúdos, nem todo mundo que fantasia crushes e amores está doido de um jeito ruim.
A poesia está aí para não nos deixar mentir, a música também (It was just my imagination, afinal, mas a história não deixa de ter seus efeitos, muitos deles bons e bonitos).
Isso de amor inventado também não afasta as pessoas dos interesses comunitários, não necessariamente, pode inclusive permitir que eles sejam intensificados em paralelo. Aliás, de outro lado, o imperativo de "vai lá, faz, pega, curte, ama" é uma das ferramentas atualíssimas do Capital e sua capacidade de falsear laços ou de criá-los de forma similar à exploração e ao consumo. Isso tem se mostrado bem mais nocivo à comunidade em muitos sentidos.
Alexandra viaja em certas ideias fracas também, nem tudo são genialidades, não é sempre 100%. Aliás, não tem porque exigir isso das pessoas, tem como exigir honestidade intelectual, decência, trabalho argumentativo, e isso ela tem de sobra. Um desses momentos ruins é a ideia de que qualquer coisa seja capaz de extinguir por completo paixões ou desejos egoístas. Isso é balela, bobagem que não se sustenta por nenhum lado (em última instância algo inclusive indesejável porque autoritário; uma paixão, um desejo egoísta, não precisam estar em relação de oposição destrutiva com o coletivo e o social, há outras possíveis) e, além do mais, coisa menos importante do que ela de fato propõe como plataforma:
1. Igualdade nas relações mútuas (isto é, o desaparecimento da suficiência masculina e a submissão servil da individualidade da mulher ao amor). 2. Reconhecimento mútuo e recíproco dos seus direitos, sem reclamar a nenhum dos entes unidos por relações de amor a posse absoluta do coração e da alma do ente querido. (Desaparecimento do senso de propriedade fomentado pela civilização burguesa) 3.Sensibilidade fraterna: a arte de assimilar e compreender o trabalho psíquico que se realiza na alma do ente querido. (A civilização burguesa só exigia que as mulheres possuíssem essa
sensibilidade no amor)
Ela era massa, a Alexandra, às vezes travava nos excessos que pretendia extinguir (quem nunca), mas os tempos pediam, enfim. De qualquer forma, maravilhosa, cheia de vida, grandes ideias, grandes objetivos comuns, desejo de um mundo mais suave. A lista acima, mesmo considerando as críticas que apontei e outras possíveis, é testemunha de uma vocação para a abertura e não simplesmente para novas imposições mais bem arranjadas, que mantêm em seu cerne uma ideia de concentração.
O grande lance sobre o Eros alado dos revolucionários seria que ele não está apartado das relações sociais e que o caminho para isso seria "(...) encher sua aljava com novas flechas; no desenvolvimento do sentimento de amor (...) a partir da nova força psíquica mais poderosa: a solidariedade fraterna". E a partir daí ela começa a desenvolver mais detidamente o que seria o amor camarada. Mas essa conversa fica para próxima. |
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