Vinte e oito de maio de dois mil
e vinte e cinto. O primeiro vento frio chegou a Cuiabá, essa cidade que me
abriga desde os nove anos, mas cujo calor escaldante nunca me conquistou. Talvez
porque vivamos ao lado do Portão do Inferno. Literalmente.
O céu está cinza e, para mim,
isso é belo.
Lá fora, chove. Mas não é uma
chuva com ventos, trovoadas, dessas que derrubam árvores ou fazem a energia
cair. É uma chuva vertical, reta, contínua, quase uma prece que cai do céu ao
chão. Uma cascata delicada que produz o mais delicioso dos sons: o barulhinho
de chuva.
O clima pede coberta, vinho,
aconchego e até afago. Mas para mim, ele desperta: energia, produtividade,
criatividade.
Engraçado que não me lembro de
muitos dias específicos da minha infância, mas desse dia eu me lembro com uma
clareza tal, como se tivesse ocorrido ontem.
Eu devia ter uns sete, oito anos.
Estava com um vestido vermelho de
crochê e uma pochete azul — sim, porque eu era uma fashionista trendsetter desde
sempre! Estávamos na parte da frente da casa: eu, meus irmãos, a babá… e um
boi. Ou uma vaca. Ou talvez um bezerro — nunca soube ao certo.
Eu me lembro do sol cálido tentando
romper as nuvens com uma luz clara, branca. Nada daquele amarelo costumeiro. Essa
luz criava pequenos pontos de calor no quintal em muretas, pedras, meu colo. Eu
me sentava nesses feixes, procurando abrigo do frio.
Um vento gélido e cortante que
era possível sentir na espinha de tão frio que estava aquele dia.
Lembro das pedras de rio,
daquelas roliças, que meus pais colocaram em frente de casa, perto da roseira
que ficava em um grande vaso de concreto, porque como a luz estava diferente,
elas estavam com um brilho especial, iluminadas, mas sem arder os olhos.
Hoje, o que mais se assemelha
àquela luz é a lâmpada fria - branca, quase azulada- mas, naquela época, 35
anos atrás, ela vinha direto da natureza.
Ou talvez de Deus.
Acho que foi ali que nasceu o meu
amor pelo frio. Ou se não nasceu, foi quando ele se revelou.
Toda vez que o vento gélido volta
a soprar por aqui, minha alma começa a se aquecer.
E a felicidade brota, simples,
como o barulho de chuva numa manhã cinza.
Bem-vindo, inverno.
Pode entrar.